Jean-Luc Cacciali – 20/04/2008
Quando pedi a Charles Melman o título de sua intervenção, ele primeiro me respondeu perguntando qual era o meu. Eu lhe disse que eu ia introduzir as jornadas, que esse seria meu título, mas eu poderia ter proposto “Uma feminilidade transmitida pelas mulheres”.
Na perspectiva de tentar dar conta do aumento da freqüência dessa clínica nas mulheres, ou seja, mulheres que até então não eram atingidas agora o são, não são mais apenas as jovens, especialmente com a forma clássica da anorexia da mocinha. Mas hoje os homens também o são, sem que isso forçosamente seja do registro da psicose, como era freqüentemente o caso até então. Quando havia uma anorexia num rapaz, era preciso pensar imediatamente na questão da psicose, o que não é mais o caso hoje em dia.
Então, meu título seria mais: “Uma nova ordem sexual”.
O que evocará, certamente, lembranças não forçosamente boas a alguns, mas tem o interesse de acrescentar uma dimensão política à clínica, à lógica e ao tratamento da anorexia-bulimia.
Tomarei então as coisas no movimento da nova economia psíquica que Charles Melman começou a elaborar, e me apoiarei no que ele já pôde avançar sobre essa clínica da anorexia-bulimia.
Em 71, no seminário ‘D’un discours qui ne serait pas du semblant’, Lacan adianta que um homem só se define na relação com uma mulher e inversamente, e que essa relação não funciona sem terceiro termo, que é o falo. Ainda é o caso hoje em dia?
O que é que pode nos autorizar essa abordagem nessa questão da clínica da anorexia-bulimia? É que Freud liga de saída a função sexual à função alimentar. Para ele, o sugar é um ato sexual. A primeira identificação ao pai, lembro-lhes, é de natureza oral, o objeto cobiçado é incorporado sendo comido. A demanda oral não é apenas satisfação da fome, é também demanda sexual, no que, diz Freud, ela é canibalesca. Um canibal, para que ele possa devorar seu inimigo, é preciso que ele o ame. O objeto concernido será então o falo, e o que será procurado é sua incorporação. O recalque dessa sexualidade que aparece na oralidade fará aparecer o que poderíamos chamar de neurose oral. As fantasias de felação e de procriação por via oral da histérica testemunham essa sexualidade que aparece na oralidade.
Nossa questão será: como abordar hoje essa clínica da anorexia-bulimia articulando-a ao mundo social atual? Mundo social atual que é, seguramente, diferente da época freudiana, especialmente no que concerne à família de então, que poderíamos dizer patriarcal. A relação com a religião é diferente e o recalque sexual certamente não opera mais da mesma maneira. Além disso, na família, o pai edipiano, interditor, é cada vez menos referência, se ainda é alguma. Trata-se mais de um pai gerador, que poderá, conseqüentemente, ser posto de lado, o que é uma operação diferente do recalque. Isto deixa lugar a que, na família e fora dela, sejam as leis do mercado que regulam as relações e as trocas. Leis de trocas generalizadas e livre acesso ao objeto (em matéria sexual, por exemplo, a prática da troca de casais está quase banalizada, pode-se ouvir falar dela hoje em dia nos jovens como uma prática banal, sem que se trate de uma dimensão franca de perversão comum, para retomar a expressão de J-P. Lebrun). Nessa economia, o que é privilegiado é o objeto reduzido ao registro das necessidades, aliás o liberalismo retomou à sua conta a palavra de ordem do comunismo: a cada um conforme suas necessidades.
Se a nomeação como distúrbio das condutas alimentares é redutora, ela tem no entanto o interesse de nos indicar que aquilo que estaria em causa seria justamente um objeto reduzido a sua dimensão de objeto da necessidade. E além disso, no mesmo movimento, poderíamos dizer talvez que o Outro grande materno também é marcado de saída com o índice fálico, testemunhando um ressurgimento do matriarcado, e então o que prevalecerá será um saber sobre o corpo, digamos, se bem que não seja muito exato dizê-lo assim, a dimensão corporal da pulsão.
Portanto, uma clínica que responde a um movimento da cultura, que tende a pôr de lado, ou mesmo a excluir, a referência à instância paterna, ou seja, à instância fálica.
Algumas palavras sobre a escrita anorexia-bulimia com um traço de união, que suscitou discussões e protestos quando da preparação destas jornadas: ela no entanto não é nova. Janet, por exemplo, ou Binswanger, já a utilizam. Ela dá conta, creio, fenomenologicamente, do que encontramos na clínica, ou seja, formas clínicas muito diversas – existem formas exclusivas de anorexia e de bulimia, como a anorexia da mocinha evidentemente, e também formas em que as duas podem se alternar.
Para nós, o interesse desta escrita é nos interrogar se, para além dessas diferentes modalidades clínicas, poderíamos isolar traços de estrutura comuns a essas diferentes formas. Como por exemplo quando Charles Melman evoca, a propósito dessa clínica, uma lógica em que, face ao nada da estrutura, ao nada no Outro, o sujeito só pode responder pelo preenchimento, ou seja , pelo todo, ou então por uma verdadeira paixão por esse nada. Ou seja, por uma modalidade bulímica ou anoréxica, e em conseqüência, certamente, com todas as modalidades possíveis de mixagem, de reversão, pois isso se passa num eixo imaginário em que falta uma referência terceira, a do falo. Ou seja, uma subjetividade que não se articula mais a uma referência simbólica no real, testemunhando assim um desinteresse pela própria dimensão simbólica que, aliás, podemos encontrar perfeitamente na cultura.
O registro exclusivamente oral desta clínica nos indica que aquela a quem a demanda é endereçada é a mãe, o Outro materno, mas numa relação fundamentalmente dual, ou seja, sem nada dever ao falo. Trata-se de um dispositivo diferente daquele que eu chamava de neurose oral, com, por exemplo, as fantasias histéricas que podem testemunhar o recalque dessa sexualidade que aparece na oralidade.
Vou falar então do caso de um rapaz, e não de uma mocinha, pois penso que podemos prever que esses casos serão cada vez mais freqüentes, como hoje acontece com as mulheres.
Trata-se de um rapaz de 23 anos, que me procurou por uma anorexia. O primeiro encontro foi um pouco particular, já nos indica uma certa relação com a própria palavra. Ele me liga, pouco antes da hora da consulta, e me pergunta se pode vir antes, senão ele virá na hora prevista, não fazia muita diferença. Na hora inicialmente prevista para a consulta, ele me liga e me pede o meu endereço, pois ele está na sala de espera de Paule Cacciali, no telefone celular, e me pede tranqüilamente o meu endereço diante das pessoas. Depois ele chega e de saída me pergunta: como vai? Tudo isso falando com facilidade, sem incômodo ou preocupação particulares por ter se enganado de endereço. Ele me dirá que é bastante extrovertido e que não tem problemas com os outros nem com sua família. Poderíamos dizer que ele não tem problemas de comunicação.
É muito magro e se queixa de crises de bulimia com vômitos.
Na infância ele era mais para gordo, o que era causa de zombarias e insultos, e não tinha amigas meninas. Na adolescência, ele se achava gordo demais e quis emagrecer, procedendo então por escolha de alimentos a excluir. O que encontramos muito classicamente na mocinha. As crises de bulimia começaram durante férias familiares, os bufês copiosos e ilimitados o levaram a comer muito. Ao mesmo tempo ele queria ter a barriga reta (não musculosa, mas reta), e então começou a provocar vômitos. Duas coisas os desencadeiam: quando ele come o que considera interditado e que ele chama de tabu (portanto o interdito está no campo da oralidade), e a segunda coisa é quando o limite é ultrapassado. Mas este limite é real, o que lhe permite se dar conta de que o limite foi ultrapassado é quando ele fica, diz ele, com a barriga distendida e não consegue mais se manter esticado e precisa se abaixar para aliviar a tensão. Portanto, tudo isso é encarado de maneira muito pragmática, não há dimensão simbólica para o limite.
De saída, ele evoca uma lembrança da infância, seus pais são libaneses, sua mãe, que é cristã atéia, lhe trazia todos os dias um pequeno croissant com amêndoas na saída da escola ou quando ele tinha que ir ao oculista ou ao dentista. Quando eu lhe perguntei o que ele pensava de sua mãe cristã atéia e da incorporação do croissant, ele respondeu simplesmente: o reconforto após uma jornada de trabalho, portanto, reconforto oral. Podemos dizer que, aí também, a palavra é simplesmente um meio de comunicação, não há retomada da questão do croissant e da cristã.
O pai é xiita, também ateu, então eu perguntei: e ele? Ele não sabe. Ele não tem, portanto, problemas com seus pais, nem com sua irmã, mas, se houver um problema com eles, que ele não conhece, e for preciso ir embora de casa, como sua irmã que é mais jovem já fez, ele o fará também. Ele terminou os estudos e procura trabalho. As resoluções para este início de ano são: encontrar um trabalho e a cura.
No que se refere às crises, ele fala de robotização do homem, é como se ele fosse telecomandado. As crises são planificadas, é uma necessidade, ele pensa no amanhã e o sistema se põe a funcionar automaticamente. Ele pensa em comprar certas coisas em certo lugar para, de fato, produzir uma crise. Há, diz ele, um prazer da crise. Ele mesmo diz que não diz gozo, mas que mesmo assim é como com as leis, por exemplo, a interdição da maconha que dá vontade de ir conferir. E então, depois das crises, há os vômitos. A propósito de tudo isso, ele diz que há uma força inconsciente que o empurra, mas ele fala também de hábito. Ele sabe que não deve, mas há alguém que quer. Há dois lados do cérebro, como para o bem e o mal, há o inconsciente mas não se trata do sujeito dividido, há dois, há dois Uns.
Pode-se dizer que há uma força inconsciente que o empurra, mas de fato ele é muito cognitivista, ela é da mesma natureza que para o bem e o mal em que há dois lados do cérebro. Ele diz também que não é o homem do justo meio, lhe falta a linha mediana. Ele faz tudo a fundo, até o fim, mas também do mesmo modo pode não fazer absolutamente nada. Este é um traço clínico muito importante, encontra-se freqüentemente essa tendência para os extremos, em que não há justo meio. Essa automaticidade, a anoréxica também faz referência a ela freqüentemente, sob a forma de um sistema, sistema de cifras em que tudo é contado, as calorias, as excreções, mas também o conjunto da vida cotidiana, o trabalho, o esporte… tudo pode ser previsto, tudo pode ser calculado.
Na bulimia, isso pode parecer menos evidente, o que aliás fará com que algumas vezes seja evocada a natureza obsessiva deste sistema. Vemos, no entanto, que nesse rapaz as coisas são organizadas segundo uma ordem que responde à mesma lógica da anorexia.
Uma jovem, após alguns anos de análise, diz que, mesmo que isso possa parecer paradoxal, quando ela come de maneira bulímica, é uma maneira de existir, mesmo que seja no todo, pois se trata de qualquer modo de zonas de controle. Ela observou também que, quando tem vontade de comer ou de beber, se ela fala verdadeiramente isso desaparece, se ela papeia a vontade aumenta.
No que concerne a sua relação com as moças, esse rapaz diz que tinha uma namorada com a qual as coisas iam bem, especialmente no plano sexual, mas eles terminaram de comum acordo pois ele ia viajar para um estágio na Inglaterra, simplesmente um estágio. Tudo ia bem e eles terminaram assim mesmo porque ele ia viajar para um estágio na Inglaterra, e terminaram de comum acordo.
Então, será que poderíamos dizer que na anorexia-bulimia trata-se de uma neurose infantil organizada pelo objeto da necessidade?
Por que não um objeto da demanda? Muitas vezes ela não pede nada, daí, aliás, a dificuldade do tratamento, pois ela não pede nada a ninguém e, especialmente, nada ao Outro. Ela vai prescindir de todos os objetos, inclusive o objeto primeiro, o objeto mais primordial, ou seja, o objeto oral. Certamente ela é tomada num funcionamento de tipo pulsional, mas será que não se poderia dizer que a demanda é de certa maneira quase uma demanda em estado puro, de tal modo a pulsão contorna o objeto? É nisso que podemos falar de objeto da necessidade, na dimensão de um objeto real. Creio que a questão da pulsão deveria ser desenvolvida, pois ela se coloca de maneira particular nessa clínica.
Esse rapaz, por exemplo, diz: boca aberta, é só abrir o armário. Boca aberta, retomaremos, de um corpo não falicizado.
Na clínica encontramos muitas vezes o objeto real que tomou esse lugar organizador, ou seja, o objeto do qual o sujeito padece seria conhecido. Para ele há o croissant com amêndoas.
Uma mulher bulímica destaca a mamadeira açucarada que a mãe lhe dava todas as noites para lhe agradecer por ser mais tranqüila que seu irmão. Uma jovem, que apresentou uma anorexia grave, evoca o aleitamento materno que durou vários anos. A mãe pensava que o marido queria um filho para agradar a sua própria mãe e, como suas relações eram difíceis, que ele pediria a guarda de sua filha em caso de separação, para confia-la, é claro, a sua própria mãe. O aleitamento era o meio de impedir isto, e foi a própria jovem que teve que pedir à mãe para interrompê-lo.
Para regular o objeto da necessidade é necessária a função fálica. O mais-de-gozar só se normaliza por uma relação ao gozo sexual cujo significante é o falo. Mas o gozo sexual, o sujeito só o encontra em seus impasses, os da castração, o que faz com que ele possa preferir a relação com o mais-de-gozar.
Lacan já chamava a atenção para o fato de que a satisfação simbólica, ou seja, a satisfação de amor e o reconhecimento do desejo, é decepcionante. Quando todos os gozos são possíveis, o que a ciência dá a entender, com a ilusão de uma satisfação direta e imediata do desejo, o objeto da necessidade é o que poderá então ser privilegiado, ou seja, o objeto reduzido a sua dimensão real, permanecendo desconhecidas as dimensões imaginária e simbólica.
Quando é o falo que interpreta o real, a significância é sexual e o significante orienta para o gozo sexual, é o gozo que vai ser esperado, ele é limitado.
Numa ordem que não é mais regida pela instância fálica, não é mais o significante que orienta para o gozo, é o objeto. Ou seja, diante do nada da estrutura não é mais o gozo sexual que vai ser procurado, mas o gozo do objeto. Gozo do nada ou gozo do preenchimento desse nada, mas é um gozo sem limite.
Hoje em dia, talvez apenas por enquanto, essa clínica concerne sobretudo às mulheres. A anorexia da mocinha testemunha classicamente a dificuldade na adolescência em ligar as transformações corporais e a sexualidade. É a instância fálica que permite que haja representação. Se esta instância falta, uma mulher não poderá mais se sustentar numa imagem falicizada. Não haverá mais essa representação possível, o corpo será reduzido a sua realidade. O que, aliás, responde ao ambiente social, que prefere um corpo que se constitui individualmente a um corpo sexuado, não é mais uma imagem destinada a agradar a um homem.
A propósito dos famosos desfiles de moda, podemos nos perguntar qual é a fantasia do criador que mostra essas silhuetas famélicas de beleza desencarnada e fora do sexo. Este ano em Milão, capital da moda, foi decidido que os desfiles se façam sob o signo da mulher solar, para responder às críticas que foram feitas.
Numa sociedade democrática e paritária, algumas jovens podem ser tentadas a fundar sua feminilidade, é claro que falo de alguns casos, não quero generalizar. Uma jovem pode então ser tentada a constituir sua feminilidade sem passar pelo pai. Pode haver essa tentativa moderna de estabelecer um dispositivo que lhe permita organizar no Outro uma transmissão da feminilidade que, desta vez, seria garantida pela mãe, já que ela não o é pelo pai como é para o menino. Ela pode assim tentar constituir uma potência do lado mulher, como do lado homem. Uma exceção, a ao-menos-uma, sob a figura de uma grande doadora oral, que permitiria assim o estabelecimento de uma lei que a faria toda. Uma toda mulher tornada possível. Com um objeto, uma falta especificamente feminina que permitiria assim estabelecer uma castração própria às mulheres.
A oralidade pode permitir o estabelecimento desse dispositivo com a onipotência materna e um objeto especificamente feminino: o nada, sob a forma do traço oral da finura. Comer o nada, como diz Lacan, o que não é comer nada. A anoréxica põe em jogo esse nada, mas fazendo dele um objeto real. Não se trata do nada que existe no plano simbólico, trata-se de um nada que substitui esse nada simbólico e vem a um lugar de presença.
Na bulimia há sempre a restituição possível. À onipotência materna, a menina responde pelo sacrifício ou pela absorção com uma restituição sempre possível. Restituição possível como equivalente do sacrifício. É uma relação entre a mãe e a filha, ou seja, fundamentalmente dual, sem terceiro. A palavra da mãe se sustenta justamente num objeto perdido que implica em que há algo a ceder ao Outro, mas a diferença é que esse objeto poderá sempre ser reencontrado.
É o Nome do Pai que faz com que o objeto seja perdido definitivamente e sexualizado. Nesse dispositivo, a alteridade, ou seja, um lugar organizado por um objeto definitivamente perdido, é recusada por uma alteridade materna em que o objeto é perdido mas sempre poderá ser reencontrado. Então, podemos nos perguntar, no que concerne a esse objeto, se se trata de uma economia de recusa do objeto ou de absorção com restituição possível para cedê-lo ao Outro, com todas as modalidades eróticas possíveis com um objeto que pode ser passado de uma a outra, ou se se trata de uma economia em que é preciso fazer desaparecer o objeto com o gozo da falta, fazer desaparecer o objeto para que ele possa reaparecer, o que, em conseqüência, constituiria aí o que se chama de uma adição. Ou seja, o dispositivo que conhecemos no toxicômano ou no jogador, não se trata da mesma economia, penso que é uma questão a respeito da qual poderíamos discutir.
A doação fálica materna é bastante clássica na clínica, mas eu creio que a particularidade na anorexia-bulimia é que é ela que controla essa doação, com esse sistema de cálculos e contas. Não há mais enigma no Outro, o pai é cada vez mais certo e é ela que controla a doação materna. Há uma tentativa de desqualificação do semblant de mulher por uma tentativa de realização da feminilidade.
Propomos: uma tentativa de fazer existir A mulher, mas, como diz Lacan, A mulher como versão do pai não pode ex-sistir senão a título da père versão.O que a diferencia da histérica que, em resposta à privação inicial, vai simbolizá-la como desejo insatisfeito e vai se queixar disso adotando o discurso histérico. A anorexia-bulimia vai celebrar essa privação que ela controla. Uma jovem falava da glória de se privar. Será que ela não adota, sob o efeito do discurso da ciência, o discurso do mestre e não mais o discurso da histérica? O discurso do mestre no qual a divisão do sujeito é desconhecida. Não há Um do sujeito, mas poderíamos ouvir nesse jovem que, para ele, havia Um, havia até dois, não era mais o sujeito dividido, eram dois Uns, os dois lados do cérebro.
Então, no que concerne aos homens, poderíamos nos perguntar se, assim como algumas mulheres podem tentar constituir uma feminilidade que não se definisse em relação a um homem, haveria também uma tentativa possível, de estabelecer o que seria um homem sem que isso se definisse em relação a uma mulher, uma resposta que não seria mais articulada à diferença dos sexos, mas numa liberdade, numa independência de um sexo em relação ao outro. Ser uma mulher ou ser um homem sem se assujeitar à referência fálica.
No último seminário de inverno, a propósito das séries de Fibonacci, Charles Melman observava que era possível se apoiar nessas séries para tentar dar conta da tentativa da anorexia-bulimia de fundar o Um, seja pela acumulação, seja pela subtração.
Terminarei com algumas observações sobre a questão do tratamento.
O estabelecimento da transferência é difícil, pois ela já implica em si mesma descompletar o saber da mãe. Se isso se mostra possível, pode-se dizer que a análise da transferência será uma direção importante no trabalho. Tratar-se-ia de reintroduzir o terceiro. Ou seja, que não se tratasse mais de uma sucessão temporal de um nada e de um todo, ou está cheio ou está vazio, mas introduzir uma sincronia: um e outro. Freud enunciava o imperativo paterno como: você fará e não fará como o pai. Tentem fazer entender que não há o mais ou o menos, o um ou o zero em alternância, que só há um porque há o zero. O um é o símbolo do zero. Ele pode remeter tanto ao um quanto ao zero contado Um. Do mesmo modo para o nada e o todo.
- Jean-Jacques Tyszler: É apenas sobre uma parte da sua exposição, que é muito rica e muito bem articulada, sobre a passagem que, a meu ver, tem uma incidência na concepção e no tratamento que temos disso que se chama, erradamente, de distúrbios alimentares. Quer dizer que eles fazem semblant de especificar, justamente, de maneira totalmente isolada, a questão da oralidade. É que nos casos clínicos, enfim se você admite, vemos facilmente que há ao menos um objeto pulsional e totalmente ligado, de um modo inteiramente bizarro, à questão da oralidade, é o olhar, por exemplo. Pois essas jovens, ao chegar aos locais de tratamento, ficamos de todo modo bastante chocados pelo que elas solicitam de início do nosso olhar, elas chegam descarnadas, elas próprias se fazem o eco de distúrbios diante do espelho, a questão das formas, enfim, tudo não funciona do lado do olhar.
E então, isso já me parece importante, entre nós, para combater um pouco a visão monomorfa que se instalou no tratamento da anorexia, e de um ponto de vista clínico prestar atenção às próprias palavras que empregamos. Quando falamos de pulsão oral, é evidente que, no fundo, é também uma pulsão bizarra do olhar que é solicitada na questão da anorexia e da bulimia também. Essa é a primeira coisa […]. Também porque isso tem um efeito, por exemplo, a meu ver, na escolha da transferência e do tratamento, porque há muitos colegas que fizeram a escolha de, de algum modo, construir sua resposta aos distúrbios ditos alimentares calculando uma resposta alimentar. Conhecemos bem, operando com essas técnicas de condicionamento ou de descondicionamento, quando me parece, e é uma questão que vamos ver durante as jornadas, durante as intervenções, a transferência se faria mais do lado do olhar, por exemplo, ou seja, o traço de feminilidade que aparece em tal momento, o traço da vestimenta, uma cor de repente num quadro muito monomorfo. Sentimos bem que há uma escolha clínica de nomeação e uma escolha de orientação no trabalho, que não vai ser a mesma, é isso, é com relação a essa palavra terrível, a meu ver, dos distúrbios ditos alimentares.
- Jean-Luc Cacciali : Sim, com certeza, mas ao mesmo tempo nessa nomeação há algo da clínica sem dúvida, quer dizer que de todo modo há essa dimensão real. Quanto a esse traço de feminilidade que pode aparecer, por exemplo, creio que é toda a questão, ali evidentemente podemos dizer, nesse momento, bem, as coisas estão no bom caminho. Está na transferência. Porque muito freqüentemente, a posteriori, por exemplo, para as jovens, pensamos na histeria, eu acho que é justamente no curso do tratamento, ou seja, é quando evolui de maneira neurótica, então isso não basta e ao mesmo tempo podemos considerar que já não é mau.
- Marc Caumel de Sauvejunte : Eu lhe agradeço por sua apresentação, eu retomarei também, se você concorda, sobre o que você acabou de concluir dizendo que lidamos com uma apresentação do sintoma, quando da apresentação desses casos, e que todo o trabalho de início é o de passar para a representação, a partir do momento em que a transferência se instala do lado da representação psíquica, passamos para um outro campo.
Eu teria duas ou três questões para lhe colocar, justamente sobre o apelo que essas pessoas fazem ao Outro, sejam eles psicanalistas ou psiquiatras, eu queria lhe perguntar primeiramente essa coisa que é paradoxal, ou seja, que, com efeito eu estou de acordo com você, são pessoas que estariam ali pedindo nada, aliás freqüentemente elas dizem: eu não ouso pedir nada, e de outro lado esse apelo, que poderia ser entendido pela resposta que os cognitivistas deram ou seja, esse apelo a uma ordem, pois de certo modo elas têm a ver com um imperativo categórico, e quando trabalhamos em instituições somos obrigados a responder do lado do S1, pois de outro modo, se não respondemos do lado do S1, respondemos, se você concorda, do lado da morte, mas um S1, nesse momento, justamente que não seria um S1 imperativo, estaria ali fazendo oscilar ao mesmo tempo a dimensão da palavra, e ao mesmo tempo a dimensão disso que diz não. Terminarei com duas questões, pois você fala se quiser de seus trabalhos sobre a anorexia-bulimia, e eu estou bastante de acordo para que isso esteja associado. Você não fez a observação, pois me acontece muitas vezes de encontrar essa clínica, é muito freqüente, não é sempre, muito freqüente algo que é bastante surpreendente, é que lidamos agora, pois a anorexia tomou seu lugar na clínica hoje com uma mãe anoréxica e uma filha bulímica. Muitas vezes me acontece de encontrar pessoas que me falam de sua mãe como uma mãe muito bela, extraordinária. Quando você a encontra uma vez, você encontra algo cadaverizado do lado da feminilidade. Então eu tenho duas questões agora: quando você fala de transmissão da feminilidade, será que essa transmissão, afinal, ela é possível? Pois manifestamente o que essas pacientes dizem é que a feminilidade nesse contexto não é possível, essa transmissão não é possível, ela dá a ilusão de uma transmissão, mas é uma transmissão que parece inteiramente impossível, e isso iria no sentido do que diz Melman, sobre o fato de que não há transmissão possível da feminilidade no matriarcado. E a segunda questão que eu tenho, fiquei surpreso, você diz que ela gostaria de estabelecer uma castração específica do lado feminino, será que verdadeiramente existe algo de uma busca da castração, ou será que não é algo que estaria do lado do desmentido da castração, era só isso.
- Jean-Luc Cacciali : são muitas questões, escute, quanto ao apelo ao Outro, creio que está lá, certamente, mas se trata de um apelo à mãe, creio que é um sintoma que é endereçado à mãe. Para responder do lado do S1, não estou seguro Marc, vemos isso com as respostas que foram evocadas, uma resposta médica que é da ordem do S1 retoma, é a mesma positivação, é uma resposta que é em espelho com a clínica da anorexia-bulimia. Ou seja, vemos isso com todas essas questões das perfusões, ou seja, evidentemente é necessário por um tempo, mas acontece que é do mesmo registro, é uma resposta em espelho, é uma resposta que é organizada do mesmo modo, ou seja, do lado de algo da ordem da positivação.A transmissão, certamente, é uma doação materna que valeria como transmissão do lado menino, então, é uma tentativa, quer dizer que não é mais um em relação ao outro, os homens em relação às mulheres, e inversamente, mas a cada um sua identidade. Para as mulheres é uma tentativa que está certamente no campo do imaginário, a tentativa de uma transmissão como do lado menino, é nisso que eu falo de uma castração que seria o estabelecimento de uma castração que seria especificamente feminina, mas evidentemente é uma questão.
- Maria Rougeon : Será que você estaria de acordo em dizer que, em relação à toxicomania, o que vem fazer diferença, tanto mais que hoje em dia continuamos na questão da adição […] afinal para a anoréxica o objeto permanece oral enquanto que na toxicomania já há uma metonímia em relação ao objeto e conseqüentemente a questão de (?) mais do lado da realidade. Como […] ?
- Jean-Luc Cacciali : Sim, talvez, mas isso já implicaria em saber se é o mesmo mecanismo que está em jogo, eu insisto, eu coloquei a questão entre duas economias de todo modo diferentes, se for o caso eu creio que o objeto especificamente oral, creio que é um dispositivo estabelecido no campo da oralidade, que não é uma questão oral, é um começo de resposta.
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NT – Para ler o texto original, em francês:
http://www.freud-lacan.com/articles/article.php?url_article=jcacciali200408
Tradução: Sergio Rezende